Em novembro de 2025, a cidade de Belém (PA) será palco da 30ª Conferência das Partes (COP30) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. O encontro, que pela primeira vez será realizado na Amazônia, representa um marco histórico para a governança climática internacional. Com uma localização estratégica no maior bioma tropical do planeta, a conferência carrega expectativas globais: decisões que podem redefinir o futuro das florestas tropicais, das comunidades indígenas e da política ambiental no Sul Global.
Mas, em meio à esperança de avanços concretos, cresce o alerta de especialistas sobre um fenômeno perigoso: o greenwashing. O termo, cunhado para designar práticas enganosas de marketing ambiental, tornou-se sinônimo de um dos maiores riscos associados a eventos internacionais como a COP. Ao praticar greenwashing, governos, empresas e até veículos de comunicação tentam projetar uma imagem de responsabilidade ecológica a partir de uma série de iniciativas sem que haja, de fato, mudanças estruturais ou redução real de impactos socioambientais.
A maquiagem verde
O conceito de greenwashing, algo que poderia ser traduzido como “maquiagem verde” é amplamente documentado na literatura científica. Dentre os principais fatores que impulsionam a prática estão as pressões externas por sustentabilidade, regulamentos frágeis, cultura organizacional baseada em metas superficiais e uma lacuna de informação entre consumidores e emissores. Em mercados onde os “selos verdes” são valorizados, mas a fiscalização é fraca, multiplicam-se promessas vazias e campanhas publicitárias desconectadas da realidade dos impactos ambientais.
Artigo publicado em 2019 na Revista Interdisciplinar do Meio Ambiente aponta que muitas empresas utilizam slogans vagos, imagens de natureza e certificados próprios — sem base científica ou regulamentação oficial — para criar uma percepção enganosa de responsabilidade ambiental. Em vez de investir em processos realmente sustentáveis, a prioridade está em parecer sustentável aos olhos do público.
Esse padrão se agrava diante de grandes eventos internacionais como a COP30. Com sua visibilidade global e forte apelo simbólico por ocorrer na Amazônia, tornou-se uma vitrine para iniciativas supostamente sustentáveis. Governos anunciam planos ecológicos e metas de neutralidade climática; empresas divulgam produtos com selos como “carbono neutro” e “eco-friendly”; fundos de investimento se reposicionam como aliados da transição verde. Porém, muitas dessas estratégias carecem de transparência, auditoria e resultados efetivos.
O primeiro passo é identificar as diferentes formas de greenwashing. “O uso de termos genéricos, falta de certificação ou evidência claras de práticas adequadas, falta de adicionalidade (por exemplo, indicar como ação voluntária algo que já é obrigatório pela legislação), falta de consistência nos princípios ao longo da cadeia produtiva, uso de imagens enganosas, dentre outros“, explica a pesquisadora Mercedes Bustamante, ecóloga da Universidade de Brasília e ex-integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Identificar a prática é um desafio
Diante de uma série de termos técnicos, identificar aquilo que seria de fato ambientalmente adequado e o que seria maquiagem verde pode se tornar um desafio. “Para o público final é algo muito complexo. No meu entendimento, pra você falar que um produto é carbono neutro, você tem que trabalhar em vários escopos, das emissões diretas do processo produtivo até as emissões indiretas. Por exemplo, se você tá comprando um leite ou uma carne, você precisa se preocupar com as emissões desse leite, dessa carne, inclusive o grosso das emissões dos produtos alimentícios e o transporte”, explica
Mercedes Bustamante alerta, no entanto, que identificar a prática é apenas o começo. “A identificação das práticas enganosas já nos permite apontar as estratégias que práticas legítimas devem considerar como transparência, adesão a processos de certificação reconhecidos e robustos, comunicação honesta, compromissos consistentes ao longo de cadeia produtiva e do ciclo de vida dos produtos e que sejam de longo prazo“, avalia.
Climatologista conhecido por seu trabalho no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e por sua atuação no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Carlos Nobre sugere um caminho seguro para começar o processo de distinção do que é válido pelo que é greenwashing: ouvir a ciência. “Jornalistas e o público tem que prestar atenção no como a ciência séria está avaliando iniciativas de práticas ambientais legítimas. Praticamente todas as práticas têm avaliações científicas importantes, é só tomar cuidado para não prestar atenção em falsos cientistas climáticos, os negacionistas que costumam dizer que não há risco ou que o risco é muito pequeno”, pondera.
Outra sugestão é desconfiar com falsas promessas. “Greenwashing costuma se apresentar como uma solução mágica, rápida, que promete conciliar crescimento econômico acelerado com proteção ambiental — muitas vezes sem comprovações técnicas e ignorando alertas da comunidade científica”, alerta o Dr. Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Um exemplo claro disso, segundo o pesquisador, é a alegação de que a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas financiaria a transição energética. “Trata-se de uma retórica enganosa: não existe base científica séria que sustente que ampliar a extração de combustíveis fósseis contribua com a descarbonização. Pelo contrário, essa exploração nos aproxima do ponto de não retorno climático”, afirma Ferrante.
“Carbono neutro”: conceito legítimo, uso controverso
Entre os selos mais populares da chamada governança verde ou governança ambiental está o de carbono neutro. Carbono neutro (ou neutralidade de carbono) seria o equilíbrio entre a emissão de carbono e a absorção das emissões de carbono pelo que se conhece como sumidouros (depósitos naturais ou artificiais que absorvem mais dióxido de carbono – CO2 – da atmosfera do que emitem, atuando como “drenos” que removem e armazenam carbono)
Em tese, o conceito indica que uma atividade, empresa ou produto emitiu uma quantidade de gases de efeito estufa que foi compensada por mecanismos de captura, como reflorestamento ou compra de créditos de carbono. Mas na prática, o uso do termo tem gerado controvérsias.
“É um processo tecnicamente complexo, onde é muito fácil maquiar a verdade“, afirma Raoni Rajão, diretor de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Rajão relatou um caso recente onde flagrou a prática sendo cometida.
“Fiz uma pesquisa sobre um produto alimentício que tinha na embalagem dizendo que ele era carbono neutro. Eu achei interessante e fui fazer o levantamento e conversar com a equipe que trabalhou nisso. Depois de investigar, a pessoa explicou que, na verdade, eles só tinham substituído uma etapa que envolvia o aquecimento desse produto, o diesel, pela lenha. Depois eles acabaram tirando esse selo”, relembra.
Mercedes Bustamante faz uma ressalva: neutralizar carbono artificialmente não vai gerar compensação suficiente na escala que o planeta necessita. “Até o momento, nenhum sumidouro de carbono artificial pode remover carbono da atmosfera na escala necessária para combater o aquecimento global. Assim, dependemos de sumidouros naturais como florestas, solos e oceanos.Para se tornarem neutras em carbono, as empresas têm duas opções: reduzir drasticamente suas emissões de carbono para zero ou equilibrar suas emissões por meio da compensação e da compra de créditos de carbono“, explica.
Aqui é preciso destacar que carbono neutro e outro conceito: líquido zero (net-zero). Esse último refere-se a um estado em que as emissões de gases de efeito estufa (GEE) são reduzidas ao máximo e as emissões restantes são compensadas por remoções de carbono da atmosfera, resultando em um balanço líquido zero de emissões. Embora sejam dois termos semelhantes, eles não são a mesma coisa.
Enquanto a neutralidade de carbono pode incluir a compensação de curto prazo, o zero líquido é uma meta de longo prazo com base científica, centrada na redução de emissões. “Ao se referir a líquido zero, é fundamental especificar carbono ou emissões líquidas zero. As emissões líquidas zero referem-se ao equilíbrio geral das emissões de todos os gases de efeito estufa (GEE) produzidas e das emissões de GEE retiradas da atmosfera”, explica Mercedes.
“O zero líquido é preferido por governos e órgãos políticos ao estabelecer metas climáticas internacionais e políticas nacionais, enquanto a neutralidade de carbono é mais provável de ser usada por empresas e organizações para suas emissões operacionais”, ensina Mercedes. “A neutralidade de carbono pode servir como um marco no caminho para o zero líquido, mas não substitui a necessidade de descarbonização estrutural”, pondera Bustamante.
O problema dos projetos REDD+
Outro eixo central da crítica ao greenwashing envolve os créditos de carbono, mais precisamente os conhecidos como Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, mais atividades (REDD+). Trata-se de um incentivo desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados de Redução de Emissões de gases de efeito estufa provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, considerando o papel da conservação de estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal.
Embora o mecanismo esteja previsto nos Acordos de Paris e tenha potencial positivo, sua aplicação prática tem sido marcada por falta de transparência e distorções. “Projetos de REDD+ são complicados porque muitos deles têm um conceito de desmatamento evitado. Então, basicamente, ele diz: estou prevendo que essa área vai triplicar o desmatamento no próximo ano. Se ela desmatar só o dobro, já gera crédito. Isso é baseado em um contrafactual que não tem como ser provado. Isso abre um espaço muito grande pra poder gerar esse tipo de greenwashing”, explica Raoni.
Em um artigo chamado Entre Indígenas e Cowboys, Rajão discute exatamente a situação de um projeto de REDD+ de uma população indígena que se vê nessa necessidade de apresentar um modelo onde toda a comunidade deles são apresentadas como “cowboys”, que vão desmatar muito, pra gerar muito crédito, mas no momento de vender, eles tem que se apresentar como alguém que protege a floresta. “Isso não é alguma falha deles, um problema moral. Isso é simplesmente porque tem essa contradição embutida no próprio sistema”, afirma.
Carlos Nobre, climatologista do IPCC e ex-diretor do INPE, é taxativo: “Os créditos de carbono representam uma pequena redução, mas estão muito longe de garantir a redução real das emissões. Em 2024, por exemplo, as emissões globais bateram recorde histórico, apesar do avanço desses mecanismos”. Para Nobre, o crédito de carbono é um complemento, não uma solução central. Se não eliminarmos a queima de combustíveis fósseis, não há mercado que resolva.
Lucas Ferrante, pesquisador da USP e UFAM, reforça: “As metas climáticas globais não serão alcançadas apenas com mecanismos de mercado. O Brasil, por exemplo, precisa abandonar projetos como o polo de gás do Solimões e o novo pré-sal na foz do Amazonas. Ampliar a exploração de petróleo para financiar a transição energética é uma retórica enganosa”.
Essas contradições já se demonstraram suscetíveis a fraudes. Em agosto de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) expediu recomendação para que fossem suspensas todas as operações, os contratos e as tratativas em andamento no tema crédito de carbono e no modelo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+), que incidem nos territórios indígenas e tradicionais, com ou sem regularização fundiária definitiva, no estado do Amazonas.
Isso porque, em junho, a Polícia Federal realizou a Operação Greenwashing, quando desarticulou uma organização criminosa suspeita de vender cerca de R$ 180 milhões em crédito de carbono de áreas da União invadidas ilegalmente. O dano ambiental foi estimado em R$ 606 milhões. A operação também revelou que a organização obteve cerca de R$ 820 milhões em terras griladas.
O ESG e o risco de desmoralização
Outra sigla amplamente usada nas narrativas empresariais é o ESG — do inglês Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança em português). O termo refere-se a práticas corporativas voltadas à sustentabilidade ambiental, responsabilidade social e ética na governança. Na teoria, trata-se de um instrumento de avaliação do impacto real das empresas no planeta. Mas na prática, nem sempre as ações são consistentes.
“Recentemente, estamos observando que com mudanças políticas em governos, muitas empresas estão retrocedendo em seus compromissos anteriores. Além das tensões políticas, há outros desafios e controvérsias envolvendo ESG tais como o greenwashing propriamente dito, além da falta de padronização (como comparar compromissos?) e o desequilíbrio entre os três aspectos envolvidos em ESG”, alerta Mercedes Bustamante. A pesquisadora sugere que a certificação dessas práticas seja feita por órgãos independentes, de maneira mais transparente possível.
O pesquisador Lucas Ferrante lembra que, no setor rural, é comum o uso de monoculturas como soja ou eucalipto como supostas formas de compensação de carbono. “Essa estratégia é cientificamente insustentável: essas plantações seriam implementadas de qualquer forma, independentemente da lógica de compensação, o que invalida a ideia de neutralidade. Esse tipo de prática não gera um sequestro adicional de carbono e, portanto, não representa uma compensação real. Pior ainda, ela contribui para a desinformação e fragiliza os mecanismos sérios de mitigação climática, criando uma falsa sensação de responsabilidade ambiental. Trata-se de uma forma de greenwashing que mina os esforços legítimos e necessários para enfrentar a crise climática de maneira efetiva”, avalia.
Greenwashing institucional e COP30
O risco de greenwashing não está restrito ao setor privado. Governos também têm recorrido à maquiagem verde para fortalecer sua imagem internacional. Um exemplo é a BR-319, estrada federal que corta áreas sensíveis da Amazônia. “Uma iniciativa ambiental legítima exigiria negar licenças de manutenção ou ampliação da BR-319 até que houvesse garantias reais de proteção à biodiversidade e às populações tradicionais. O que ocorre, no entanto, é o avanço da obra, embalado por discursos de desenvolvimento regional”, alerta Lucas Ferrante.
Outro ponto é o uso seletivo de indicadores. “O atual governo federal se beneficia da narrativa de redução do desmatamento, enquanto ignora o aumento expressivo das queimadas. Isso revela uma mudança no modus operandi: em vez de motosserras, usa-se o fogo — mais difícil de fiscalizar e mais danoso às emissões de gases de efeito estufa”, explica Ferrante.
Legislação sobre greenwashing é escassa no Brasil
Um dos grandes problemas para combater a prática de greenwashing é a escassez de legislação e notas técnicas sobre o tema. O Vocativo fez uma busca nos sistemas do Congresso Nacional e encontrou apenas três projetos de lei abordam diretamente o problema do greenwashing:
O primeiro deles é o PL 3.013/2021, do Senado, prevê punições a empresas que fizerem alegações ambientais sem comprovação científica, criando normas para rotulagem e exigência de certificação por órgãos independentes. Na Câmara, tramita o PL 1.672/2022, que propõe a criação do “Selo Verde Brasil”, a ser concedido apenas a empresas com auditoria completa de pegada de carbono, uso de recursos naturais e impacto social. Por fim, o PL 4.021/2023, também da Câmara, estabelece diretrizes para os mercados de crédito de carbono no país, com foco em rastreabilidade, verificação de adicionalidade e participação de comunidades tradicionais nos projetos.