O déficit habitacional brasileiro ultrapassa 6 milhões de unidades. E, embora estejamos passando por um processo de inversão da pirâmide demográfica, ainda formaremos milhares de novas famílias até 2030. Esses números, somados a fatores como as emergências climáticas e as múltiplas necessidades decorrentes desta pluralidade geracional, evidenciam não apenas a incapacidade dos modelos atuais de resolverem, sozinhos, todas as dores relacionadas à esta demanda — mas também a urgência de ampliarmos as formas de acesso à moradia. Ao mesmo tempo, retratam a fragmentação de um setor que ainda opera com baixa digitalização, processos manufaturados e dependência de estruturas tradicionais de crédito.
A relação entre crédito imobiliário e PIB permanece praticamente estagnada nos últimos anos, sem variações estatisticamente significativas — um contraste com os percentuais muito mais elevados observados em países desenvolvidos. Isso evidencia que, além de repensar os modelos de risco de crédito, o Brasil precisa expandir formas alternativas de acesso à moradia, como o aluguel acessível e os modelos habitacionais híbridos, capazes de atender públicos historicamente excluídos do mercado formal.
A moradia, apesar de ser um direito constitucional, continua inacessível — ou precária — para milhões de famílias. Não apenas por escassez de oferta, mas pelas barreiras criadas por um ecossistema habitacional altamente complexo e estruturado em modelos tradicionais de atendimento.
São inúmeros os atores envolvidos: incorporadoras, construtoras, agentes financeiros, órgãos reguladores, corretores, investidores, entes públicos das três esferas e consumidores finais. Esse número elevado de agentes, somado à variedade de interesses e aos fluxos fragmentados, compromete a fluidez dos processos, o acesso a informações e a capacidade de tomar decisões rápidas e baseadas em dados. Considerando ainda a lógica produtiva predominantemente manufaturada e a enorme quantidade de fornecedores e prestadores de serviços, o gerenciamento de processos torna-se um desafio à parte.
Nesse cenário, as plataformas tecnológicas vêm ocupando um espaço cada vez mais relevante, consolidando caminhos para apoiar essa integração. Elas criam pontos de conexão, reduzem a duplicidade de esforços, organizam dados e permitem uma comunicação mais fluida entre os agentes. Como sinal dessa transformação, temos visto profissionais de tecnologia ocupando posições estratégicas dentro das incorporadoras — reflexo de uma necessidade emergente por decisões mais informadas, dados confiáveis e ferramentas capazes de lidar com a crescente complexidade do setor.
Neste contexto, a tecnologia se apresenta como uma ponte possível — e necessária — para articular os diversos agentes do setor: incorporadores, construtoras, financiadores, investidores, governos, corretores e usuários finais. Mais do que apenas digitalizar processos, a tecnologia viabiliza novas conexões, reduz assimetrias de informação e amplia o acesso à moradia de forma mais segura, eficiente e personalizada.
Esse movimento se insere em um ecossistema que, segundo o Mapa da Terracotta Ventures (2024), já reúne mais de 1.200 construtechs e proptechs no Brasil, empregando diretamente 22 mil pessoas. Para se ter uma ideia da aceleração desse mercado, em 2020 havia 702 iniciativas mapeadas — o que representa um crescimento superior a 70% em apenas quatro anos. A maioria dessas soluções está concentrada nos segmentos de aquisição e uso da propriedade, mas há avanços importantes em áreas como crédito alternativo, short stay, tokenização de ativos e plataformas de construção inteligente.
Essas plataformas têm papel fundamental em reduzir a fragmentação do setor. Elas conectam etapas que antes operavam em silos, promovendo ganhos de eficiência, transparência e inteligência operacional. Ainda assim, o potencial de transformação está longe de ter sido explorado por completo. Um estudo do McKinsey Global Institute aponta que a construção civil segue entre os setores menos produtivos e digitalizados do mundo. Enquanto a produtividade média global da economia cresceu 2,8% ao ano nas últimas décadas, a construção avançou apenas 1%. Segundo o estudo, se adotasse práticas modernas de gestão, industrialização e digitalização, o setor poderia aumentar sua produtividade em até 60%. Isso representa não apenas um ganho econômico, mas uma oportunidade estratégica para tornar a habitação mais acessível, eficiente e conectada aos desafios do século XXI.
Tecnologias como BIM, marketplaces de insumos, CRMs com IA, visitas virtuais e contratos digitais já não são mais tendência — são parte do presente de um setor que precisa urgentemente repensar suas bases.
A inovação, no entanto, exige mais do que ferramentas: demanda mudança cultural, educação corporativa, governança, regulação adaptativa e visão sistêmica. E é nesse sentido que surgem diversas possibilidades de uso da tecnologia com alto potencial de impacto:
- Promover a integração entre os diversos agentes do ecossistema habitacional, superando a fragmentação atual;
- Reduzir custos e ampliar o acesso à moradia digna por meio de modelos digitais mais eficientes;
- Oferecer alternativas de crédito e análise de risco para públicos desbancarizados;
- Criar soluções de locação inovadora e propriedade compartilhada;
- Utilizar dados e inteligência analítica para embasar políticas públicas e decisões de investimento;
- Automatizar e monitorar obras, desde o planejamento até a entrega;
- Melhorar a experiência do usuário e a transparência de processos;
- Desenvolver modelos escaláveis com potencial de aplicação nacional e impacto social relevante.
Essas direções estão alinhadas aos desafios estratégicos colocados pela CAIXA – o maior player do mercado – em seu mais recente edital de inovação habitacional, que busca exatamente esse tipo de resposta tecnológica com impacto sistêmico. A digitalização só será eficaz se estiver conectada a um propósito de inclusão, sustentabilidade e geração de valor compartilhado.
O futuro da habitação passa necessariamente por integrar aquilo que hoje está desconectado: planejamento urbano, produção, crédito, tecnologia, relações sociais e políticas públicas. E a tecnologia, quando bem aplicada, pode ser o elo entre todos esses pontos.
Isadora Moraes, Diretora de Novos Negócios da Alpop.