A inteligência artificial está moldando o futuro do trabalho, da ciência e da vida cotidiana, transformando setores inteiros e redefinindo a forma como interagimos com o mundo digital. No entanto, essa revolução tecnológica segue um padrão preocupante: a baixa representatividade feminina no desenvolvimento dessas soluções. A ausência de mulheres na construção da IA não é apenas um reflexo das desigualdades de gênero no setor de tecnologia, mas um fator que perpetua vieses e limitações na própria tecnologia.
Os sistemas de IA aprendem com grandes volumes de dados e são programados por pessoas. Quando as equipes de desenvolvimento não contam com a diversidade de gênero necessária, existe um risco considerável de que preconceitos inconscientes se reflitam nos sistemas finais. Assim, ambientes predominantemente masculinos podem, sem intenção, reforçar estereótipos e negligenciar questões específicas que afetam as mulheres. Isso se traduz, por exemplo, em processos seletivos que desfavorecem candidatas ou em tecnologias de reconhecimento facial que apresentam menor precisão ao identificar traços femininos.
A pesquisa “Data Bias: The Hidden Risk of AI” (Enviesamento de dados: o risco escondido da IA, em português), conduzida pela Insight Avenue para a Progress, aponta que 78% dos decisores empresariais e de TI em todo o mundo acreditam que o viés dos dados se intensificará com o aumento do uso de IA e machine learning. No contexto brasileiro, 57% das organizações relatam enfrentar desafios relacionados ao enviesamento dos dados, evidenciando a urgência de se repensar os processos de desenvolvimento e implementação dessas tecnologias.
Neste cenário, surge a questão se a tecnologia será um fator de inclusão ou reforçará ainda mais as disparidades de gênero.
Segundo o relatório “Os efeitos da inteligência artificial na vida profissional das mulheres”, da UNESCO, apenas 29% dos cargos de pesquisa e desenvolvimento em ciências são ocupados por mulheres. Além da baixa participação na área, esse grupo enfrenta desafios adicionais para se inserirem no setor de IA, como a conectividade digital – enquanto 55% dos homens no mundo têm acesso à internet, esse número cai para 48% entre as mulheres. Isso impacta diretamente a capacidade de aprendizado e qualificação das mulheres em áreas tecnológicas.
Outro fator que dificulta a entrada e a permanência das mulheres no setor de tecnologia e, consequentemente no desenvolvimento de IA, é o desequilíbrio na divisão das tarefas domésticas, que impõe uma carga extra sobre as mulheres. Mesmo com os avanços rumo à equidade, elas continuam a dedicar significativamente mais horas do que os homens às responsabilidades do lar e ao cuidado familiar. Essa disparidade reduz o tempo disponível para investir em formação e especialização em campos que exigem constante atualização, perpetuando um ciclo de exclusão.
Diante desse panorama, adotar estratégias que ampliem a participação feminina no desenvolvimento da IA é essencial para transformar esse cenário, e algumas medidas se fazem necessárias.
O primeiro passo envolve o incentivo à educação e capacitação por meio de programas educacionais que estimulem o interesse de meninas e mulheres em áreas de tecnologia desde a base, fortalecendo a formação técnica e o desenvolvimento de habilidades específicas.
Políticas de recrutamento ativas que busquem atrair profissionais femininas, a criação de ambientes de trabalho que favoreçam sua permanência e valorizem sua ascensão na carreira rumo cargos de liderança no setor também contribuem para a transformação da cultura organizacional.
E o ponto central dessa mudança é a transparência e auditoria dos algoritmos por meio de mecanismos que permitam a identificação e correção de vieses nos sistemas de IA, garantindo que os algoritmos reflitam uma visão plural e inclusiva.
Apesar dos desafios existentes, exemplos inspiradores já demonstram que é possível transformar o setor. A indiana Anima Anandkumar, diretora de aprendizado de máquina na NVIDIA, é uma das principais referências no setor. A brasileira Gabriela de Queiroz, diretora de IA na Microsoft for Startups, criou a iniciativa AI Inclusive, que incentiva a participação de grupos sub-representados na área de inteligência artificial. Já a israelense Daphne Koller, cofundadora da Coursera, ajudou a desenvolver ferramentas de IA aplicadas à educação.
Esses casos ilustram como a atuação feminina pode abrir caminhos para uma tecnologia mais justa, eficiente e inovadora.
A diversidade nas equipes de desenvolvimento de inteligência artificial colabora com a criação de soluções que evitem a reprodução de vieses e promovam a inclusão. Ao incorporar perspectivas variadas, os sistemas de IA se tornam mais equilibrados, seguros e capazes de atender a um público global com as necessidades específicas de cada grupo.
Em um mercado cada vez mais globalizado, a participação ativa das mulheres no desenvolvimento tecnológico não só minimiza os riscos de preconceitos, como também potencializa os benefícios que a inteligência artificial pode oferecer à sociedade. Garantir um papel central às mulheres nesse processo é, portanto, uma necessidade estratégica e ética.
Enquanto o futuro da inteligência artificial ainda se desenha, é fundamental que as políticas, as empresas e as instituições se comprometam com a promoção da diversidade e da equidade. Somente assim, essa tecnologia poderá se tornar uma verdadeira aliada na construção de uma sociedade mais inclusiva, na qual inovação e justiça caminhem lado a lado, como uma aliada da equidade de gênero — e não mais um fator de exclusão.
Giuliana Corbo, CEO da Nearsure.